Uma missão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) desembarcou no Brasil e, entre 24 e 29 de maio, promoverá audiências públicas sobre Direitos Humanos, com foco na pauta da emergência climática. O principal órgão judicial da Organização dos Estados Americanos (OEA), com sede na Costa Rica, é encarregado de interpretar e aplicar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tratado internacional que prevê direitos e liberdades que precisam ser respeitados pelos Estados Partes.

As audiências, que ocorrerão em Brasília (DF) e Manaus (AM), terão a participação de diversas organizações de defesa dos Direitos Humanos de toda a região e representantes de Estados, organismos internacionais, academia e instituições nacionais. As entidades serão ouvidas pela Corte no âmbito do pedido de opinião consultiva solicitado pelos Estados do Chile e da Colômbia sobre Emergência Climática e Direitos Humanos, com o objetivo de que a Corte IDH responda como os Estados devem prevenir catástrofes climáticas; como devem fornecer informações ambientais às comunidades e como irão proteger os defensores das causas ambientais, dentre eles mulheres, crianças e povos originários.

Uma das organizações que acompanhará a Corte será o Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL)com forte representação no Brasil e que há 30 anos atua na defesa jurídica dos Direitos Humanos no continente americano. A organização, formada por defensores dos Direitos Humanos, é responsável por grande parte dos casos que resultaram em sentenças da Corte, com destaque para o da brasileira vítima de violência doméstica Maria da Penha, que, após litígio e amplo debate, gerou a aprovação da Lei Maria da Penha. “A Corte Interamericana é o único órgão competente para interpretar o Pacto de San José e, diante de algum parecer solicitado por Estados, tem o objetivo de deixar mais explícito o dever dos governos a respeito de situações específicas”, explica a advogada e mestre em Direitos Humanos, Helena Rochaco-diretora do Programa Brasil e Cone Sul do CEJIL.

Com status consultivo perante a OEA, o CEJIL participará, em conjunto com especialistas e organizações aliadas, das audiências da Corte, com cinco intervenções sobre diferentes temas que fazem parte da consulta. Um dos temas de destaque é a relação entre a emergência climática e os direitos das crianças e adolescentes. “Será um tema que considera o impacto da emergência climática para a infância e juventude. Defendemos o direito de participação das crianças e dos jovens na discussão de políticas de enfrentamento da crise climática. A tragédia do Rio Grande do Sul reforçou como não estamos preparados e precisamos de políticas e protocolos que sejam adotados em situações extremas, principalmente para proteção da população mais vulnerável, que inclui as crianças e adolescentes”, defende Helena.

Em suas apresentações, a organização falará sobre vários pontos-chave para essa discussão, como a necessidade não apenas da implementação de ações preventivas mitigatórias – como a redução das emissões de gases do efeito estufa –, mas também da fiscalização de atores privados e medição dos impactos sociais, além da reparação a comunidades afetadas.  Também enfatizará o efeito da emergência climática nas crianças e adolescentes, além da importância de proteger pessoas defensoras do direito à terra, ao território e  ao meio ambiente. O objetivo é permitir direitos procedimentais, como acesso à participação pública, à informação e à Justiça.

A Opinião Consultiva sobre Emergência Climática e Direitos Humanos foi solicitada pelo Chile e Colômbia em 2023. Diante do pedido, foi realizada a primeira audiência consultiva sobre o tema, em abril deste ano, em Barbados, no Caribe, durante a 166ª Sessão Ordinária da Corte.

Na ocasião, a Corte IDH recebeu um recorde de quase 250 observações escritas, inclusive de nove Estados, órgãos regionais e internacionais, organizações da sociedade civil e até mesmo de uma empresa. “Com os debates ao redor da opinião consultiva, a Corte Interamericana tem a oportunidade de acelerar as respostas sobre a emergência climática,  fenômenos como inundações, secas e desmatamentos forçados, também sobre a violência contra pessoas defensoras de direitos da terra, como um marco de direitos humanos que vincula o Brasil a boa parte dos países da América. A aposta é que o direito interamericano contribua para gerar soluções mais justas, igualitárias, sustentáveis e duradouras, que incluam não somente as diversas instâncias e grupos a nível nacional, como também regional e internacional. Uma audiência no Brasil e no coração da Amazônia é muito simbólica com relação ao que está em jogo na emergência climática para nossa região e para o mundo”, diz Viviana Krsticevicdiretora executiva do CEJIL.

Proteção aos defensores dos Direitos Humanos

Outro objetivo do CEJIL com a realização das audiências consultivas é destacar os riscos enfrentados pelas pessoas defensoras dos Direitos Humanos nas Américas, que atuam em defesa dos territórios e dos direitos e geram diálogos e ações concretas para a sua proteção. “A América Latina é o continente mais perigoso para defensores dos Direitos Humanos. Por isso, é importante discutir a segurança dessas pessoas e a obrigação dos Estados de proteger e defender o direito a defender direitos”, afirma Helena.

Além da participação na consulta à Corte, a organização irá levar a Manaus a exposição itinerante do livro-arte Territórios, que mostra a história de 10 defensores latinoamericanos dos Direitos Humanos, assassinados em função de sua atuação. Entre eles, estão os brasileiros Chico Mendes e Marielle Franco. O livro foi desenvolvido pelo CEJIL e escritório Arte Dos Gráfico, a partir da colaboração dos artistas Marcelo Brodsky, da Argentina, e Fernando Bryce, do Peru.

Programação Corte IDH no Brasil

A Corte Interamericana de Direitos Humanos iniciará a agenda de audiências públicas da opinião consultiva no Brasil no dia 24 de maio, com audiência na sede do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília. A sessão será aberta pela presidente da Corte, juíza Nancy Hernández López, e terá participações do Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Honduras e Paraguai.

A agenda da Corte em Brasília terá ainda duas sessões privadas no dia 23 de maio. Um dos tópicos que será debatido é a atuação do Estado Brasileiro nas investigações e identificação dos corpos das vítimas da Guerrilha do Araguaia, ação revolucionária de grupos comunistas na região do Rio Araguaia (Maranhão, Pará e Tocantins), ocorrida entre as décadas de 60 e 70.

Ao lado de outras organizações de Direitos Humanos, o CEJIL levará à Corte a denúncia de descumprimento da decisão da CIDH de 2010 sobre o tema. Na ocasião, a Corte declarou a invalidade da interpretação da Lei de Anistia brasileira – que acobertava os crimes cometidos pelos agentes do Estado durante a ditadura militar – e responsabilizou o Estado brasileiro pelas violações aos direitos à vida, liberdade, segurança e integridade, à proteção contra prisão arbitrária e ao processo regular. “Queremos destacar que as medidas impostas foram desacatadas e as medidas estruturais não foram cumpridas”, afirma Helena.

Quase 30 anos depois da localização dos corpos, há mais de 20 ossadas sob a tutela do Estado brasileiro, sem identificação. “As ossadas foram mal preservadas, deixadas em caixas de papelões e em condições de decomposição. Há questionamento, inclusive, se há condições de serem identificadas. Diante da grave violação ao direito humanitário de descanso e luto das famílias, é obrigação do Estado realizar o trabalho científico para que as famílias tenham uma resposta”, ressalta Helena.

As organizações reforçarão, à Corte, que o trabalho de busca, identificação e investigação sobre a guerrilha foi encerrado em 2022, com a extinção da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos pelo governo Jair Bolsonaro. “A audiência da Corte no caso do Araguaia volta a pôr na mesa os obstáculos da Justiça e do Poder Executivo brasileiro para fazer frente aos desaparecimentos e torturas cometidos durante a ditadura militar e a impunidade que vem se perpetuando por décadas. A identificação das pessoas desaparecidas é uma medida imprescindível cuja demora é injustificável e que aprofunda a dor de centenas de seus familiares”, comenta Viviana.

Na sessão privada, será discutido também o Caso Márcia Barbosa de Sousa, vítima de feminicídio em 1998 em João Pessoa, e que resultou em condenação da Corte Interamericana, em 2021. A Corte considerou a existência de uma cultura de tolerância à violência contra a mulher e pediu a implementação de medidas de reparação, como um protocolo nacional para investigação de feminicídios. Os dois casos são acompanhados juridicamente pelo CEJIL.

Após as audiências em Brasília, a Corte seguirá para Manaus, para a segunda rodada de audiências consultivas nos dias 27, 28 e 29 de maio. Serão ouvidas organizações que apoiam mulheres, povos originários, crianças e adolescentes, dentro da perspectiva ambiental e de justiça às comunidades mais vulneráveis. “Atualmente há três pedidos de opinião consultiva sobre o tema emergência climática no mundo: o da Corte Internacional de Justiça, o do Tribunal Internacional do Direito do Mar e o da Corte Interamericana, que é o primeiro que trata a crise climática com enfoque nos Direitos Humanos. É bem simbólico que essas audiências ocorram em Manaus, no coração da Amazônia”, completa Helena.